quarta-feira, 17 de março de 2010

O Bomberman em cada um de nós

Johan Huizinga, de acordo com a Wikipedia, a sempre útil Enciclopédia McDonald´s dos tempos modernos, define jogo como: "uma atividade voluntária exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente de vida cotidiana."

Ok, perfeito. E isto vem a propósito do quê, em concreto?

De uma dada confraternização por mim agradavelmente experimentada, no decurso de um recente fim de semana, algum tempo atrás. Convidado que fui para visitar a casa de uns amigos, adversários ocasionais na competição eufórica ditada pelo truco, verdadeiro ex libris sul-americano democraticamente desconhecedor de clivagens raciais e/ou sociais, decidi-me, languidamente vivenciando mais um Sábado, pautado, desta feita, pelo espírito do dolce faire niente, sem outra preocupação que não a de dar boas risadas e procurar saber se as caipirinhas se encontravam devidamente preparadas, aceitar uma proposta ao grupo genericamente formulada, de uma alternativa de entretenimento e de declarado desafio, não sob a forma de um jogo de baralho, mas sob os auspícios de uma consola, num claro upgrade tecnológico do cenário e das regras da costumeira batalha.

Desloquei-me então para a sala/arena onde iria decorrer o embate entre os jogadores/gladiadores, criteriosamente escolhidos de entre os convivas, mirando desafiadoramente a velhinha PS2 e os seus funestos comandos. Como antecâmara do duelo, fui então ouvindo atentamente a descrição do jogo seleccionado e os precisos termos do já ansiado confronto, que eu abertamente pretendia tornar humilhante para todos os meus pares.

Qual não foi a minha surpresa, quando me foi anunciado, ser o motivo condutor de tão maliciosa euforia, não uma das mais recentes maravilhas gráficas dessa gigantesca e vibrante indústria dos maléficos videogames, mas sim, um título obscuro e com origens na pré-história deste particular vício, apelidado de Bomberman Battles.

Título tão pretensiosamente infantil, fez-me pensar que o QI de inteligência a aplicar em tal jogo, deveria estar bem próximo do fundo raso de qualquer conhecida forma de inteligência referenciada.

Com algum escárnio, comentei o meu pensamento à restante assistência, tendo sido imediatamente brindado com olhares cínicos, por parte de quem era já veterano e versado nas artimanhas de tal título.

Por falar em veterano, confesso me ter surpreendido, a dado momento, a nostalgicamente me sentir mais velho do que habitualmente me poderei considerar, atento o meu notório desfazamento para com os meus idos tempos juvenis, pontualmente empolgados mediante primitivas jogatinas eletrônicas/computorizadas. Não que tivesse alguma vez despendido grande tempo em vício por mim sempre tido como inútil e sacrificador da fruição de outras experiências, bem mais interessantes e agradáveis. Mas, não deixei de lastimar a percepção da minha vetusta experiência em tais andanças. Ainda para mais, porque não queria, obviamente, perder ante os meus adversários de ocasião.

Resumidamente, o objetivo geral do aludido jogo, no seu modo multiplayer, é o de completar os níveis, colocando estrategicamente bombas nos labirintos apresentados, a fim de matar os amigos/inimigos, assumindo então o sobrevivente final na sangrenta arena povoada por quatro jogadores apenas (dois comandados por humanos e os dois restantes sacaninhas operados pela IA), o papel de olímpico e vitorioso campeão sobre a incauta e amargamente derrotada concorrência.

Vamos agora aos factos: tendo em mente a singela realidade, já apregoada, de que não aprecio minimamente perder, optei por estrategicamente evidenciar os meus méritos na segunda rodada do jogo, inspirado no frio intuito de melhor poder analisar as diversas variantes do jogo, procurando minimizar assim, a indesejada possibilidade de derrota.

Se o visual do jogo pode simpaticamente ser apelidado de simplório e jurássico, a rápida jogabilidade e o seu efeito nos litigantes, rapidamente descamba em surtos verdadeiramente hilários, à medida que vão sendo assassinados, em cenário francamente "cartoonesco", os nossos quesilentos rivais.

Depois da minha estréia nada auspiciosa, redobrei a minha concentração ao longo das restantes e encadeadas partidas com 2 minutos apenas de duração, disputadas até à última fração de segundo, tendo sido tal esforço condignamente recompensado, para satisfação da minha arrogância e frustração dos demais.

É deveras impressionante como se altera o comportamento humano, quando sob os paramentos de ávido jogador, como se a nossa personalidade e sobrevivência estivessem verdadeiramente em causa no tabuleiro, qualquer que seja o mesmo, respondendo o nosso ser, perante o desfecho da habilidade (ou ausência desta) em conseguir comandar as ridículas figurinhas que nos fielmente representam na tela, sendo servida a sobremesa de tal realidade, acompanhada “de um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente de vida cotidiana”.

Homem, mamífero que pensa. Pois bem. Ainda assim, primitivo nos seus mais básicos instintos animais, habitualmente enclausurados na privativa jaula edificada pelas imperiosas regras da sociedade/reino animal do qual faz parte. Bastam duas ou três disputadas partidas, para que tais instintos quebrem as amarras do seu forçado enclausuramento, para se despudoradamente manifestarem no circo de um tosco e inofensivo jogo.

Os urros de vitória, as imprecações e os gritos de frustração ouvidos a partir da dantesca arena, poderiam confundir um terceiro e induzi-lo a pensar que se encontraria nas cercanias de uma arena romana, ou de um funesto açougue dos infernos.

Sensações tão primárias, reduzindo-se as mesmas à manifestação de alegria por parte dos vencedores e à evidente raiva e/ou desolação por parte dos vencidos.

Independentemente da plataforma e da era em que nos encontramos, o jogo será sempre uma arma municiada pela necessidade de afirmação pessoal e da nossa superioridade sobre os demais, quer sejamos seres verdadeiramente racionais, ou não.

De qualquer forma, independentemente do teor que antecede, resta-me não negligenciar a mais importante das conclusões:
Sob a batuta de tão imprevisível jogatina, o que mais releva é a saudável e agradável convivência com as pessoas verdadeiramente nossas amigas, sem dependência do motivo e cenário imponderável da reunião.

Nem mais, nem menos.

PS: dedicado ao auto-apelidado Mestre de tal jogo, GBH.

Sem comentários: